À Segunda Vista

Bom dia a todos os ouvintes! São 7h10min da manhã, eu sou Roberto Caspas e falo ao vivo aqui do Centro!

As manifestações começaram cedo hoje aqui na principal avenida da cidade. Uma multidão (deve ter aí, o quê, umas duas mil pessoas) está agora marchando e protestando contra a polêmica lei que criminaliza o uso de xampus em todo país.

O pelotão de choque da polícia já está posicionado, fortemente armado, esperando qualquer sinal de confusão, para interferir ostensivamente.

- Com licença, repórter Caspas?

Estou na escuta, pode falar.

- Aqui do estúdio, nós estamos curiosos. Você pode nos descrever como é essa multidão?

Sim, claro! Eles estão se aproximando com cartazes e gritos de guerra. Eu vou tentar ouvir o que eles estão gritando... É... "Governo!"... "Quero meu xampu"... peraí, está difícil de entender... "Governo! Quero meu xampu!"... "Legalize já"... "ou vá tomar..."  Desculpe, são gritos realmente... é... inapropriados. E, nossa... à medida que eles se aproximam, o cheiro de cabelo sujo fica mais forte. Realmente, não dá para ficar perto.

- Cuidado com a isenção, repórter. Nós estamos ao vivo!



Desculpem, desculpem. Eu vou tentar falar com o comando da polícia... É... bom dia, senhor comandante. Na opinião da polícia, a situação está se agravando?

- Bom dia. A situação está sob controle. Nós estamos com um efetivo suficiente e preparado para garantir a segurança da população de bem.

O que a polícia tem feito para coibir o tráfico de xampus, comandante?

- Nas últimas semanas, o trabalho foi reforçado. Só aqui na cidade, foram mais de 5 mil frascos de xampus apreendidos. Diversas marcas, para todo tipo de cabelo (ondulados, secos, lisos, com pontas duplas, entre outros) e de todo tamanho (100 ml, 200 ml, 250 ml... e até pequenos frascos de 20 ml, que são doses individuais). Além disso, os derivados também estão sendo recolhidos, como condicionadores, cremes para pentear, cremes de tratamento, cremes fixadores, etc. Isso porque há denúncias de que pode haver xampus escondidos nessas embalagens, o que é totalmente ilegal.

Muito obrigado, comandante. Bom, enquanto a manifestação não se aproxima da polícia e não há confrontos, nós voltamos ao estúdio. É com você, Geraldo Sedoso.



- Ao vivo do Centro da cidade, nosso repórter Caspas trazendo as últimas informações sobre a marcha do xampu. Agora são 7h17min, e vamos saber como ficou a sessão da Câmara dos Deputados, que aconteceu na noite de ontem e que debateu essa polêmica lei. A reportagem é de Tiago Penteado.

Não terminou bem a sessão na Câmara dos Deputados na noite de ontem. Após muita discussão e opiniões contrárias, continua proibido o uso e o comércio de xampus em todo território nacional. A lei entrou em vigor há três semanas, causando o caos em boa parte da população. O deputado Enrolando Borba está preocupado:

"Não se tem mais respeito nesta casa! Onde já se viu tamanha petulância dos meus colegas legisladores? Se o povo quer xampu, vamos dar xampu para o povo!"

Mas a deputada Íris Pentelha discorda:

"O povo não precisa de xampu, senhores! O povo precisa de dignidade! O projeto do governo federal 'Mais Sabonetes' já está atendendo a todas as famílias de baixa renda cadastradas, que poderão SIM ter seus direitos garantidos de terem os cabelos limpos, sem precisarem depender do uso dessa droga de xampus"

Segundo a bancada favorável à decisão do governo, a criminalização foi necessária devido aos efeitos químicos, físicos e psicológicos causados nas pessoas usuárias dessas substâncias capilares, conforme explica o senador Calvo Patos:

"Tu veje... Não é di hoje que o xampu... interrrfere nos rrrelacionamentos sociais... entre as pessoas da nossa sociedade. O usuário... que faz-se o uso desta substââância... dota-se de uma coragem, de uma cerrrteza pessoal... de uma segurââânça proporcionada pelo:

número 1: pelo cheirinho do xampu na hora do banho, que já interfere nos receptáculos nasais que levam a sensação de prazer ao cérebro... deixando assim... o usuário com suas ciências neurais alteradas;

número 2: pela confiââânça de que está saindo de casa com um cabelo mais forte, saudável e mais poderoso do que realmente é... e NAS RUAS sabe-se lá... o que um sujeito assim... dotado de tal falsa consciência de superioridadi... é capaz de fazer;

número 3: com a criminalização dos xampus, nós botamos um ponto final... Final... no preconceito... e na diiiiscriminação... da diferença de cabelos (inclusive a Falta deles... dos cabelos... em uma parrrcela da população...);

número 3, para finalizar: nããão serããão toleraaaadas... nenhum tipo de açããão... que desrespeeeeite os cidadãããos... que querem contribuir com a lei"

Para a rádio Notícia Agora, repórter Tiago Penteado.



- Voltamos ao vivo para a avenida, onde o repórter Roberto Caspas tem informações atualizadas. Parece que a população está prestes a se confrontar com a polícia. Agora são 7h28min. Bom dia, Caspas.

Sedoso, os ânimos se alteraram. O povo está aos berros aqui... Vamos tentar falar com uma manifestante... Oi, o que você pensa dessa nova lei?

- Isso é um desrespeito!!! Olha para o meu cabelo, moço! Olha! Vê se isso é cabelo de gente?! Faz três semanas que eu lavo ele só com água e sabão... Está duro, ressecado, cheio de frizz! O senhor acha certo?!

Eu vi a senhora batendo boca com um policial. O que aconteceu?

- Ele veio, olhe só, ele teve a ousadia... de vir cheirar meu cabelo... para saber se eu usei xampu!!! Isso aqui é um protesto pacífico, consciente! Quem ele pensa que eu sou? Uma criminosa?!

Deixa eu tentar falar com o policial aqui... Com licença, uma palavrinha, por gentileza. Há suspeita de uso de xampus aqui na passeata?

- Positivo! Nós da polícia somos treinados para reconhecer o cheiro do xampu à distância. Se você respirar bem fundo (uunnnffff...) pode sentir o tom cítrico de algum Garnier vindo daquela área ali, ó.

Opa! Opa! Parece que tem um confusão logo mais ali à frente, eu vou tentar chegar lá. Com licença... Com licença... Dá uma licencinha, senhor? Oi... Realmente, há uma briga aqui. A polícia está imobilizando um jovem adolescente. Meu Deus! Ele estava em posse de quatro frascos de xampu nas cinturas sob a camiseta! É isso mesmo, quatro frascos. A polícia está abrindo e despejando no chão...

- Está confirmado, é xampu. Cabelos ressecados. Prende esse vagabundo aí.

- Não! Me solta!! LEGALIZE JÁ!!!

"Legalize já! Legalize já! Legalize já! Legalize já!"

O povo está gritando em apoio ao adolescente. A polícia está levando ele para a viatura. Voltamos aos estúdios.



- Que lastimável... É por causa de pessoas assim que o movimento perde força... Bom, obrigado repórter Caspas. Qualquer novidade, nos avise. Agora são 7h44min. Comentários agora com a credibilitosa opinião do especialista Folículo Arantes. Bom dia.

"Bom dia, é... uma situação sem precedentes na história do nosso país. Em várias regiões, em vários Estados, as marchas ganham as ruas, pela descriminalização do xampu. Agora, ao contrário do que alegou o senador Calvo Patos agora há pouco, é preciso compreender os impactos socioeconômicos do xampu na sociedade para entender quais os reais motivos por trás dessa lei.

Primeiro ponto: o principal beneficiário direto dessa mudança de cultura higiênica é a indústria saboneteira, que precisa triplicar a produção de sabonetes para saciar a necessidade do povo. Segundo: por que o sabonete também não é criminalizado? Todos sabem que os efeitos do sabonete são tão (ou mais) prejudicias que o uso do xampu. Dependendo da procedência do sabonete, o ressecamento dos fios capilares pode resultar até mesmo na morte do couro cabeludo, com o tempo, com as quedas frequentes, etc. Se é para proibir, que proíba-se tudo!

Terceiro ponto: com a legalização dos xampus, o tráfico encerrará 90% dos índices de criminalidade, porque todos sabem que o mercado negro dos xampus, encarecidos, acaba financiando os assaltos, os furtos. Aumenta a sensação de que estamos todos fazendo algo ruim, desprezível, etc. Consequentemente, essa sensação permite que esses usuários se sintam inclinados a experimentarem produtos mais fortes e viciantes, como são os casos dos condicionadores, dos cremes para pentear, etc. Até chegarem aos extremos, em que procuram centros de beleza para fazerem hidratação, progressivas, piastras, cortes ousados, pinturas, e por aí vai.

É, sem dúvida, um assunto para ser ainda muito discutido na sociedade."



- Obrigado, nosso comentarista Folículo Arantes. São 7h52min, estamos recebendo ligações dos ouvintes. Bom dia, com quem eu falo?

- Bom dia, Seboso!! Aqui é a Suzete.

- Bom dia, Suzete. Só uma correção, meu nome é Sedoso, não Seboso. Haha! Mas me diga, qual sua opinião sobre essa lei?

- Então, Seboso, meu filho vinha agindo estranho. Demorando demais no banheiro. Aí achei que era normal, coisa da idade. Mas aí ontem eu passei em frente à porta do banheiro, e senti aquele cheiro... aquele típico...

- Sei...

- Eu esperei ele sair, e entrei no banheiro, vasculhei tudo, não achei nada. Mais tarde, ele saiu com uns amigos, e eu fui revirar o quarto dele. Até que eu encontrei. Dois frascos pequenos de xampu, Seboso... Meu filhinho...

- Calma, senhora, não precisa chorar...

- Que eu criei com tanto esforço, Seboso!! Metido com essas coisas agora. Daí no fim da noite ele chegou em casa, eu estava esperando na sala. Perguntei "o que é isso aqui no teu quarto, Luís Miguel?", mostrando o vidrinho. Ele arregalou os olhos, não sabia responder. Então alguém bateu na porta, era uma menina. Ela estava esperando ele do lado de fora. Ela veio entrando, sem saber que eu estava ali, e dizendo bem assim "gato, já pegou um bagulhinho pra mim?"

- Cristo...

- Seboso!! Ele tava usando xampu para impressionar uma menina!! E ele ia repassar a droga pra ela também!! Aquela ruiva vagabunda!! Do cabelo pintado!! Querendo roubar meu filho de mim, destruir nossa família!!

- E o que você fez? Calma, não chora...

- Eu fiz o certo... Chamei a polícia.

- Não?! Que coragem! Parabéns... Deve ser muito difícil...

- Partiu meu coração... mas eu sei que fiz o certo. Como ele é menor de idade, ele só vai cumprir medida socioeducativa, um tratamento à base de muito sabonete Phebo e oração.

- Muito obrigado pela sua participação, dona Suzana.

- É Suzete.

- Bom, são 8h02min, o programa vai ficando por aqui. Muito obrigado pela sua audiência. Nós voltamos ao meio-dia com mais notícias sobre a marcha do xampu ou a qualquer instante com o plantão ao vivo do nosso repórter Roberto Caspas. Um abraço do seu amigo Geraldo Seboso - digo, Sedoso. Bom dia!



...

Alô? Oi, amor... Cheguei em casa, sim... Ah, hoje o dia foi tenso... Foi... Cobri ao vivo a marcha do xampu... Não, não, estou bem... Mas teve repórter da concorrência lá que levou uma sabonetada no olho, foi tenso... Escuta só: por que você não vem hoje aqui, para a gente namorar um pouquinho? Hein? Hah... a gente toma um banhozinho juntos, que tal? A gente pode... lavar o cabelo... sacou...? Aham... Você acha que no meio de todo aquele povo, eu não ia descolar uns vidrinhos para nós? Ouvi dizer que fazer amor depois de usar xampu dá uma sensação e tanto... Ah, você gosta, é? Safadinha... Vem cá, então... vou te lambuzar inteira de xampu, sua gostosa! Beijo...


Djonatha Geremias
Intro: F Em Am (3x) / F  G

Am       Em              Am
Eu seguirei meu coração
Am7       Em               Am
Meu coração que já foi seu

                F                 G
Foi seu irmão e, de antemão,
                 Am             F
já lhe socorreu, e só correu
                   G                   Am
do meu coração esse seu temor

                 F                      G
Temor ou não, feriu sem razão
                     Am              F
Ensinou-lhe a dor e essa lição
           G           Am
Adormeceu, cicatrizou

F Em Am (3x) / F  G

Am         Em           Am
Eu continuei a caminhada
       Am7             Em                     Am
Vem cá, minha amada, mas não me siga mais

                 F                     G
Pois aprendi, porquanto sofri,
               G#aug         E             Am
com essa lição, te seguindo em vão
            F             Em            Am
E que agora sou quem vai embora
                   Fm
Eu não volto mais

                 F
Pois aprendi
                           G
que o melhor de mim
                      Am
é o meu coração.

                  F
Pois aprendi
                           G
que o melhor de mim
                      C
é o meu coração.


Djonatha Geremias
Ah, acaso Shakespeare houvera a conhecido
Saber-se-ia um infanto pupilo do drama
Enrubesceria diante de tal ama
Pela qual adoeceria não tê-la escrito

Quem me dera se William, desse vosso olhar
Despudorado, feminino e perigoso
Encanto de brilho despretensioso
houvesse escutado tal vívido gargalhar

E se vós o interpelásseis, menina irrequieta,
As melhores tragédias, despediria aos estábulos
De nova pena, comporia mais encantadores diálogos
O bardo de Avon reaprenderia a ser poeta

Ah, mísero de mim, séculos depois agora
Pois coube a mim, não ao dramaturgo
A mim, demérito eco de um sistema burgo
Dever um poema a tal jovem senhora

Porque não deveria precisar de ser poeta
Quem enxergasse, dessa Juliet, a intríseca poesia
Azar de Shakespeare, que não a pode conhecer,
E dos Romeos que não souberam o quanto ela valia

Não intento ser personagem de contos ou referências
Basta-me ser grato por conhecê-la
Deusa, filha de Júpiter, princesa e estrela
É em Diana que a poesia sorri em reticências...

Djonatha Geremias
Eis que a vida rebate
Arranca-me, de repente,
uma parte

Que nasceu tão do nada
E cresceu, diligentemente,
amada

Incompreendida, em fissura
Teimosa, sobretudo,
minha e tua

Por sempre mal-entendidos
Desistiu, de uma vez,
sem avisos

Arrancada por cauterização,
Se cicatriza, não sei,
Esse coração

Somos mútuos análogos
Que se entendem, cretinos,
Sem diálogos

Adeus, chatólogo
Que seja só, apenas,
Mais um
Até logo


Djonatha Geremias
Hoje sentei-me à praça.

As palavras "Minha melodia imperfeita" ainda soavam desde cedo na mente - acordei com elas.

Atrás de mim, a igrejinha lotada de fiéis, todos cantando o Corpus Christi. Nas minhas mãos, o caderninho de entrevistas. A máquina fotográfica envolta no pescoço, e a caneta girando entre os dedos.

O sol ardia no céu azul, mas perdia feio para o vento frio de inverno, que me tremia. Eram 14h30min, fui escalado para acompanhar a procissão que sairia daquela igrejinha de bairro e iria até a principal do Centro. Por acaso, a missa atrasou a procissão... por tempo indeterminado.

Sentei-me no banco gélido de concreto da pracinha.

"Minha melodia imperfeita..."

À minha frente, uns 20 garotos jogavam bola. Ao meu lado, um idoso no carro falava ao celular com voz autoritária. Do outro lado, nem lembro, muitos carros estacionados, talvez...

Meu pensamento se voltou para o caderno e a caneta. O que mais um escritor poderia fazer sentado em um banco de praça, sem ter o que fazer e segurando duas ferramentas poderosas e cheias de potencialidades? Nada.

Não consegui pensar em nada para escrever porque aquelas palavras estavam me distraindo.

"Minha melodia imperfeita..."

Resolvi escrevê-las. Nada mais, nenhuma inspiração. O vento frio soprou de novo. Como o frio sabe nos distrair dos pensamentos - não é à toa que tantas pessoas só conversam sobre o clima.

De repente, o estalo. Era o vento a mão da natureza me cutucando e dizendo...

"Preste atenção em mim"...

Então reolhei o que estava acontecendo ao meu redor. Os garotos não só jogavam bola. Eles eram parte da vida acontecendo. Em época de Copa do Mundo no meu país, alguns deles estavam com a camiseta amarela da seleção brasileira. Resolvi observá-los e tirar dali meu poema.

Começou assim:

Minha melodia imperfeita
Raio de sol com vento frio
Sopra na pele uma potência delicada
Convidada, tímida
Observada

Olhei para aquelas palavras... Seria isso? Foi por isso que acordei ouvindo aquela expressão? O vento me bateu no rosto de novo. Me fez olhar para os lados. O velho no carro falava ao celular com um tom arrogante - justo o que o diferencia um idoso de um velho -, mas depois deu uma risada, que me fez repensar o prejulgamento que fiz dele.

A caneta girou nos meus dedos de novo:

Minha melodia insatisfeita
Ressuscita, quão tedioso é morrer
Se aquecer no frio
Se esquecer num rio
Ignorado, engordurado
Trêmulo

Não! Não pode ser isso. Está tão pesado, tão duro, tão mórbido... Não quero criar algo assim. Olhei para os lados, em busca de outra dica da vida. Enquanto eu procurava, uma mulher se atravessou na minha frente, caminhando com um bebê envolto em um cobertor. O menino não tinha nem um mês de vida, penso.

— Olha o tio jogando, filho... — disse a mulher, apontando para um dos meninos jogando bola a nossa frente.

Dois garotos largaram a partida e vieram cuticutar o neném. Isso me fez esquecer o velho estranho e me focar no humanozinho quentinho ali, nos braços da mãe, sendo paparicado pelos jovens. Segui:

Minha melodia atrasada
Caminhou por décadas
Os caminhos decaídos
Dos quase encontros
Beija calorosa minha barba revolta
Minha tola revolta que renasce
Bebezinha, acobertada
Amada

Ah, um pouco mais de leveza, finalmente. Tinha novamente frases leves que fluem melhor, mas, sobretudo, um calor que eu não estava sentindo antes. A poesia fria começava a me aquecer. Fui surpreendido por duas menininhas caminhando lado a lado.

— Se eu te der um balão daqueles, tu vai melhorar?
— Não.
— Ah... mas eu já ia te dar de qualquer jeito.

Minha primeira reação foi rir e depois anotar essa fala no caderno, em uma página aleatória que nem consegui reencontrar - mas ficou gravado na memória. Aí percebi o que faltava no meu poema.

Dessa vez, nem senti o vento:

Minha melodia recém chegada
Que distrai os homens-estrelas
Frágil, protegida
Rolando na grama úmida, enternecida
De um inverno invertebrado
Sem a coluna das calúnias
das melodias passadas

Ok, não foi nada do que eu pretendia. DONG! Toca o sino da igreja. Olho a hora no celular: 15 horas. Meia-hora passou rápida... Olhei para a igrejinha, o povo lotado na porta, tentando olhar a missa lá dentro. De vez em quando, cantavam em coro suave.

Minha melodia amadurecida
Limpa das cagadas da vida
Dos lençois revirados
Dos dedos gelados
Trabalha agora em meu corpo
Adulta, robusta, pesada, não cantada
Que tédio... é hora de morrer de novo.

Outro "de repente" me chamou a atenção:

— Gordo desgraçado!

Gritou um dos meninos que jogavam bola. Gostei da experiência de ouvir as duas meninas antes, então me propus a ouvi-los. Melhor: abandonar de vez essa poesia impertinente que me insistia e, agora, criar uma nova, somente com as falas dos jogadores.

Se esporte é cultura, por que não?

Gordo desgraçado!
Vai marcar agora o tempo?
Não... vou marcar tua mãe!
Falta aqui!

Sempre que é gol, troca?
Três gols, muda de time.
É dois gol!

Foi mão!
Não foi!
A bola é nossa.
A bola é minha!

Atrás, Felipe!
Bate aí, negão!
É nego mesmo, né...
O goleiro é burro.

Corre, corre, corre!
Vai! Vai! Vai!
Não fala assim...
Se ferremo.

Foi trave, hein.
Um a zero.
Vira, Leo! Vira, Leo!
Vai, macaco!
Rebenta!

Foi falta ali!
Se jogou, se jogou...
"Me toca", que é isso?!
Ah, ninguém merece, né...
Deixa, deixa!
Vai, viado!

Meu neguinho banzo...
Para de conversar!
Daí, cara, tu vai encarar?
Tão falando de mim?
De...dos... iguais!

DONG! O sino da igreja tocou de novo. Será que ele toca de meia em meia hora? Não... já são 16 horas! E nada de a procissão começar...

"Minha melodia imperfeita..."

Que saco! De novo?! Você não cansa?! Não saiu nada! Eu tentei mil vezes antes, busquei inspiração em tudo ao meu redor e não consegui nada! Nada! Me deixe em paz...

E aí eu percebi, apesar do frio, que eu estava em paz. O sol quente, o vento frio, o velho no carro, os meninos jogando bola, o bebê quentinho, as meninas amigas, os fiéis cantando na igreja, eu sentado em um banco de praça, em um feriado tranquilo, com papel e caneta na mão, tentando compor poemas, ouvindo os sons da vida, observando as cenas da vida...

Eu estava em paz, tinha meus amigos, meu amor, meu emprego de escritor, jornalista, enfim... não era a canção que eu esperava ouvir quando acordei, era imperfeitamente perfeita, a minha canção de harmonia.

As pessoas na igreja começaram a sair, entrar nos carros, o padre falando ao microfone, chamando as pessoas para a procissão. Estava na hora de continuar a vida, trabalhar, fazer aquilo de que eu gosto tanto.

Pulei do banco, liguei a câmera fotográfica e corri em direção à pauta,
feliz por ter entendido
que todo esse texto
e contexto
eram, eles mesmos, a
"Minha melodia imperfeita"...


Djonatha Geremias
Todo anjo vai cair
quando se perguntar
"Por quê?"


Djonatha Geremias
Há uma diferença
- sutil, mas há -
entre poetas e recalcados
E ela é você

Não você,
mas o "você"
que você leitor
nem sabe quem é

O você está lá
alvo de exaltações
depressões
romeuejulietices

"Porque você é assim..."
"Porque você faz isso comigo..."
"Porque sem você..."
"Você... você... você..."

E como bom poeta
e recalcado que sou
dedico esse poema
a você

Você, por piedade
pare de ser perfeito
seja mais sem-graça
deixe de ser apaixonante

Quem sabe assim
nossos poemas e poetas
tenham menos recalques
E mais poesia

Djonatha Geremias
Suor, e assim começava...
suava-me sem saber
se sou ou se serei
sempre assim, só.

Só que agora,
sem mais ser seu,
eu não sei ser outro
a não ser teu.

E suor me sangrava sádico
suave e ácido
aos sábados sozinho
de sobressalto a solidão

Senta assim, só nós
suspiros calmos
na cama solta
sob nossos sonhos suados

Ensina-me a sair
só assentando-me ao seu lado
assinando em si minha sina
e assassinando meu solo descompassado.

Sou, soo, suo, só seu.
Sou sim. Soo tolo. Suo meu ser.
Sem mais ser seu
Só serei assim, mais um ser
suado e só.

Djonatha Geremias
Vontade de gritar na janela
De fechar os olhos e sorrir
Vontade de sentar no chão e meditar
De me jogar na cama e dormir

Vontade de cantar uma música nova
E dançar uma coreografia que nem existe
Cumprimentar todo mundo na rua
Por um fim a tudo que for triste

Vontade de repetir a dose
De te apertar contra a parede
Sucumbir ao teu sorriso em hipnose
Porque é de ti, e da tua tempestade,
a minha sede e a minha vontade

Djonatha Geremias
Foi assim que cheguei, não queria acordar
Me vesti de madame, caminhei para lá
Desci as escadas, luxuosos degraus
Por trás de um batom, uma vida de caos

Bem me lembro o porquê, tantas vidas atrás
Juventude abrasiva, instintos animais
Entreguei-me inteira a um só coração
Sem futuro o deixei, o mundo disse que não

E foi assim que cheguei nesse maldito lugar
Tantos homens usei, casamento não há
De cristais só as taças de um álcool fugaz
Cigarros à vontade, viver não me satisfaz

Ao pisar o carpet da sala de estar
Outro encontro marcado, mais um para matar
Sorri encantadora com meus lábios febris
Pedi suas licenças, quão astuta atriz

Nunca me seduziu a ideia de um brasão
Releguei meu vestido aos cuidados do chão
Maquiagem borrada, nua em frente ao espelho
Sepultei de uma vez o meu sonho vermelho

E foi assim que cheguei nesse maldito lugar
Ao pisar o terraço, não quero nem pensar
Um passo em falso, não mais que meu sorrir
Me sinto livre de novo, uma eterna aprendiz

E a brisa soprou meu passado para trás
Cores de uma paixão que não volta jamais
E tudo acabou, tudo silenciou
Tudo escureceu, tudo se dispersou.

E uma canção tocou suave em meu coração
Sob um eterno por-do-sol, sem qualquer punição
De paixões não lembrei, nem de homem qualquer
Ao menos, por uma vez, fui apenas mulher.

Djonatha Geremias