À Segunda Vista

Ocorrência Nº 19/89 - Cap. 1

0
Içara, 1989.

Uma noite extremamente quente, abafada... até normal para mais uma noite de verão.

Ela estava deitada quando sentiu a primeira pressão.

Ainda sonolenta, sentiu aquela respiração forte atrás de seu pescoço.

Aquela mesma de quem a fez ter pesadelos durante meses e um pânico a cada vez que alguém se aproximava de forma repentina.

Uma mão suada e hostil acariciou sua coxa, enquanto uma segunda pressão se fez em sua barriga.

"Você gosta, ?", ouviu ela de uma voz malandra, seca e nojenta.

Um líquido quente escorreu por suas pernas e então ela despertou dolorosamente.

"A bolsa estourou…", disse trêmula.

"Merda! Logo agora?!!", falou o outro, "Puta merda, e agora?"

A dor se intensificou à medida que as contrações ocorriam.

"Eu preciso ir pro hospital"

"Não dá tempo, o carro  na oficina. Eu vou chamar minha mãe".

Ele se levantou, enrolou-se numa toalha e gritou pela janela "Matilde!! Ô, Matilde! Acorda, velha! A bolsa arrebentou!! Matilde".

Uma senhora apareceu na janela da casa vizinha, ele continuou "Vem pra cá e manda a tua filha chamar minha mãe".

Matilde veio correndo, mancando, devido à idade já avançada.

Ao ver o estado da grávida na cama, de pernas abertas e com cara de dor, ela empalideceu.

Havia já muito sangue derramado e, após conferir, viu que a dilatação ainda não era suficiente para fazer nascer um bebê.

Duas horas depois, ainda com o bebê em seu ventre, a mãe desmaiou, sem mais forças para empurrar a criança ao mundo.

O homem estava em um bar próximo bebendo caipirinha, irritado por o bebê ter que nascer justo naquele momento.

Queria botar a culpa em alguém, mas não podia.

Um casal de adolescentes se beijava em uma mesa, ao fundo do bar.

Nervoso por estar sem sexo naquela noite, não suportou a cena de carinhos e beijos apaixonados dos jovens.

Levantou-se e foi em direção a eles.

Empurrou o jovem para trás, fazendo-o quase cair da cadeira.

"Tu é folgado, heim, moleque!", bradou ele.

O casal, atônito, tentou deixar o local, mas o homem precisava descontar sua frustração em alguém.

"A vadia da minha mulher  parindo na minha casa, eu  aqui na seca tentando encher a cara e tu dando malho na minha frente", disse ele antes de dar um murro na cara do rapaz.

A garota gritava por ajuda, mas o dono do bar, que já conhecia o figurão, nem se intrometeu.

O rapaz caiu deitado, com o nariz quebrado.

"Já caiu, filho da puta? Tem mais pra ti, levanta, seu merdinha!"

A garota se jogou chorosa sobre o amado, recebendo na costela um chute que estava endereçado ao moço.

A filha de Matilde apareceu no bar, gritando "O bebê nasceu, Edivaldo. Tua mulher não acorda".

Ele saiu dali proferindo ameaças contra o casal, rumo a sua casa.

A filha de Matilde, uma jovem de 15 anos aproximadamente, amiga do casal que apanhara, correu em direção a eles, tentando ajudar.

"Calma, Jô…Vai ficar tudo bem".

Com as mãos no local onde foi chutada, a loira moça conseguiu dizer, quase sem respirar “Tomara que morra! Morra ele, morra a mulher e o maldito filho!! Desgraçado…”

Edivaldo entra em casa e encontra sua mãe aos pés da cama com Matilde.

"Que  havendo?" disse ele, levemente embriagado.

A mãe de Edivaldo, uma senhora de pouco mais de 50 anos, olhou com desprezo para ele, dizendo "Você não merece o mínimo de benção que Deus te dá, seu imundo."

Ele andou em direção à esposa, deitada desacordada na cama "Acorda, Nisandra! Levanta daí!".

"Ela não vai acordar, Edivaldo", disse calmamente sua mãe, fitando o chão de tábuas largas.

Ele deu um leve tapa na face de sua mulher, sem efeito, e outro mais forte, nada...

Seus olhos petrificaram, inconformados, mas não parecia que iriam sequer lacrimejar "Cadê o bebê?".

As duas se entreolharam, Matilde abaixou a cabeça, chorando.

"É melhor você não ver ele, Edivaldo"

"Cala a boca! Cadê ele?"

"Levou tempo demais, filho".

Edivaldo parou.

Fechou os olhos e urrou o mais alto que pode.

Uma multidão nas ruas se aglomerava cada vez mais tentando olhar de longe a cena pela janela do quarto, em vão.

A polícia apareceu, adentraram a casa com armas em punho.

Dois policiais imobilizaram um Edivaldo furioso e chorão.

Em poucas horas, todos já haviam ido para suas casas e um clima pesado de luto se abateu sobre a pobre casa de madeira onde falecera Nisandra.

Edvaldo adormeceu bêbado, ao lado da esposa morta. Dormiu, como de costume, de costas para ela.

Só restaram acordadas a mãe de Edivaldo e Matilde.

As duas ficaram sentadas na cozinha, cada uma em uma cadeira vermelha de ferro.

A luz sob o teto, repleta de insetos, tentava em vão fazê-las se cansarem e dormirem.

Eram três horas da madrugada quando Matilde quebrou o silêncio "É melhor eu ir vê-lo"

"Não", respondeu a outra, "ninguém vai ver ele, senão eu. E pela manhã, ninguém mais o verá, nunca mais, nem a mim".

Matilde a olhou com um ar misto de reprovação e preocupação "Ele já deve estar com fome".

Friamente, a mulher respondeu "Se tiver, vai chorar."

Ao amanhecer, antes mesmo de o sol surgir no horizonte, sob um céu azul quente e seco, Julião, um mendigo que dormia à porta do bar, viu uma senhora quase idosa coberta por um manto escuro, do alto da cabeça até as pernas, cruzando as ruas e deixando o bairro.

Em seus braços, ela carregava uma bacia grande de roupas, também coberto por um lençol.

Ele não podia dizer com certeza, mas ouviu por um breve momento um fraco choro abafado de neném vindo dali.


Continua... (capítulo 2)

Djonatha Geremias

0 comentários:

Postar um comentário