À Segunda Vista

A Lenda do Príncipe das Cicatrizes e a Filha do Mago

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I
Em um reino distante
Em uma época muito presente
Havia um príncipe adolescente

Tão frágil, vivia para matar dragões
Mas a cada fera assassinada
O realezo se cortava com o fio da espada

Aos poucos, a fama dele se espalhou
E, por aldeões e meretrizes,
Foi conhecido pela alcunha de "o Príncipe das Cicatrizes"

Todavia, não se orgulhava do sangue que derramava
Por penitência, jamais ocultava o rosto marcado
Até que, certo dia, uma jovem sentou ao lado

Ela procurou os olhos dele
Ele os escondeu sob os longos cabelos
Mas ela conseguiu vê-los pelo reflexo no espelho

— Você é tão belo, como pode se esconder?
Eu soube que jamais escondeu a face
Por que se coloca neste impasse?

— Quem me dera saber a resposta, donzela
Pela primeira vez, me envergonho
Não pelas marcas, mas pelo significado medonho

— Meu pai é um mago ancião
Conhece muitas poções, jovem senhor
Certo que sabe uma cura para tão triste caçador

— Minha tristeza não se cura com alquimia
Faz parte de minha natureza obscura
Sonhar em ser diferente é loucura

— Se quer acreditar assim, que seja
Não me importa qualquer passado cicatricial
Seus olhos são muito bonitos, por sinal

O nobre adolescente enrubesceu
Tentou esconder ainda mais o rosto
Sem sucesso, de alma já estava exposto

— Não tente me tirar o desgosto
De caminhar por esse mundo sob tal indignidade
Acaso sabes o porquê dessa monstruosidade?

A moça se calou
Olhou para o chão e suspirou
— Cada cicatriz foi um dragão...

O príncipe se levantou rápido
Seriamente, a encarou lá de cima
— Pior que isso: ainda oculta é minha sina

Em passos determinados, ele se afastou
E só então percebeu, já de costas
Quem era a jovem, que não mais lhe deu resposta

Na verdade, ele não queria acreditar
Teria matado tantos dragões em vão?
Atormentado, decidiu pela solidão


II
A filha do mago recorreu ao pai
— Que fórmula milagrosa, meu senhor,
poderia acabar com esse desfavor?

Com olhar silencioso de sabedoria
O velho descartou qualquer milagre
— Nada pode salvar aquele cabeça-de-bagre

— Que mania tem o homem
De achar que tudo é absoluto
A desesperança é o maior dissoluto!

Rindo, o mago se ergueu
Tudo o que precisava era de um pouco de fé
O último elemento que despejou em uma xícara de café

— Tome, filha amada, dê a ele de beber
Ele precisa aceitar de forma consciente
Do contrário, de nada adiantará esse recipiente

Obstinada, a garota se empenhou em encontrar o príncipe
Triste notícia a de que ele havia saído em mais uma missão
Se não corresse a tempo, lá se iria mais um dragão

Como um príncipe tão frágil conseguia, sem se cortar,
Atravessar bosques, montanhas, vales e despenhadeiros,
E ainda fazia no próprio corpo cortes tão certeiros?

Sem armaduras, espadas ou escudos
A donzela enfrentou caminhos tortuosos
Despistou feras e se esquivou das tribos de criminosos

Chegou, maltrapilha, finalmente
Ao Vale dos Demônios Alados
Onde um dragão furioso deixou o príncipe encurralado

Com a boca seca, a jovem olhava o rapaz
Prestes a ser massacrado pelo fogo draconiano
Como ela, de longe, poderia evitar o destino tirano?


III
O Príncipe das Cicatrizes encarava a besta
Dessa vez, sem intenção de levá-la à morte
Em nome de todos os dragões já ceifados, se entregaria à sorte

Tentou se lembrar do primeiro monstro abatido
Parece que nunca houve um início
Como se sempre houvesse matado, sem princípio

Se lembra também de nunca ter sentido medo
Apenas a imposição de ter que defender o reino
Matava com esmero, sem nunca ter necessitado de treino

O castelo em que morava era tão vulnerável
E um quarto especial tão quente e aconchegante que tinha
Que transformaria qualquer princesa na mais feliz rainha

Desventuradamente, havia a ameaça dos dragões
O risco contínuo de um ataque iminente
Que princesa aceitaria viver sob esse repente?

E nessa jornada eterna, abriu mão do castelo
Para, antes de qualquer sonho, aniquilar todos os dragões existentes
Mesmo que, deles, fosse derramado sangue inocente

O que começou como capricho
Um corte na carne por um dragão desvivido
Tornou-se o destino de nunca mais, por uma princesa, ser querido

De que adiantaria exterminar todos os dragões do mundo
E ficar para sempre em um castelo perfeito, sozinho
Melhor então deixar de existir, sumir, aceitar o descaminho

Diante da última fera que encontraria em vida
A redenção vinha em forma de permitir a vingança, tão cedo
E ninguém saberia que o Príncipe das Cicatrizes era, na verdade, o Príncipe do Medo


IV
Sentindo o calor mortífero
Ouviu de longe um grito
Tão feminino e tão aflito

Reconheceu de longe a filha do mago
Sofrida, angustiada, desnecessária...
De que a serviria presenciar essa morte ordinária?

Até o dragão, que estranhamente já aparentava hesitar
Virou-se para olhar a origem do som
Seria esse um sinal mau ou bom?

Com um frasco na mão
Trêmula, despejou um líquido na xícara dada pelo velho abobado
Que poder místico haveria ele preparado?

Como em um relance
Ela tentou se lembrar da advertência paternal
Beber consciente ou aceitar aquele mal

Sem armas ou tempo para pensar
Só restava o elixir na mão
Em um momento de desespero, bebeu tudo, sem razão

Como se fosse mágica (e por que não?)
O dragão levantou voo e pousou diante da dama, febril, como em brasas
Rugiu aos céus e deitou-se, abraçando-a com as asas

Atônito, o príncipe se ajoelhou
Olhou para a cena sem querer acreditar
Como criança arrependida, lentamente começou a lacrimejar

O dragão urgia sofrido
Como quem chorava, complacente
Enquanto a filha do mago morria ali, lentamente

Sentindo-se culpado,
O Príncipe das Cicatrizes teve a última ferida
A mais mortal e dolorida

Viu aquela garota linda, que poderia facilmente ser sua rainha,
Sucumbir, do nada, a uma morte gradual
Ele sentiu a real dor da morte de um inocente, por conta do próprio mal

Incapaz de suportar a verdadeira desonra
Desembainhou, pela última vez, a espada afiada
E cravou as lâminas na própria garganta, onde a culpa estava engasgada


V
Em um reino distante
Em uma época muito presente
Havia um príncipe adolescente

Ele queria amar em segurança
Mas não existe amor sem riscos
Seria um relâmpago incompleto, um corisco

Queria proteger o próprio coração vulnerável
De todos os monstros dos ciúmes, medos e incertezas
Inseguro, não deixou amor algum desfrutar de sua beleza

Quando o destino trouxe o amor predestinado
Recusou-o, enclausurando-se na própria crença
Tornando a solidão a própria sentença

A alma gêmea, o amor que enxerga por através do olhar
Filha do sábio, do criador, do Pai, do velho mago
Não desistiu dele, lutou e fez, por fim, o sacrifício arriscado

O príncipe viu o medo, do qual viveu querendo derrotar
Se mostrar, de fato, o guardião do amor prometido
Permanecendo até o último segundo ali, em prantos, detido

O Pai já sabia que a única forma de salvar o príncipe
Seria o sacrifício do verdadeiro amor consciente
E o amor estava mais do que disposto a isso, feliz ou infelizmente

Era uma vez um amor
Que morreu por insegurança
Arrependido, desiludido e sem esperança


Texto: Djonatha Geremias

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